Decisão considera documentação de cônjuge como empregado rural como início de prova
Nesta sexta-feira será visto uma jurisprudência que trata sobre o tema 327 da Turma Nacional de Uniformização, que assim decidiu: "Constitui início de prova material do exercício de atividade rural a documentação em nome do cônjuge ou companheiro que o qualifica como empregado rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurado especial." Abaixo segue a decisão para análise dos amigos.
EMENTA
REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRIA. TEMA 327. SEGURADO ESPECIAL. REGIME DE ECONOMIA FAMILIAR. CÔNJUGE EMPREGADO RURAL. DEMONSTRAÇÃO DO INÍCIO DE PROVA MATERIAL COM DOCUMENTAÇÃO COMPRABATÓRIO DO VÍNCULO DE EMPREGADO RURAL. POSSIBILIDADE. LIDES CAMPESINAS QUE DEMANDAM O TRABALHO RURAL PARA O SUSTENTO. RECONHECIMENTO DA INVISIBILIDADE HISTÓRICA E DIFICULDADE DE PROVA PELA MULHER TRABALHADORA RURAL. JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO. RESOLUÇÃO 492/2023. NECESSIDADE DE CARACTERIZAÇÃO DA INDISPENSABILIDADE DA ATIVIDADE RURAL DO SEGURADO ESPECIAL. RECURSO DO INSS DESPROVIDO. FIXAÇÃO DE TEMA.
1. Imperioso considerar os aspectos históricos de exclusão para se concluir que a segurada especial (i) desempenha atividades domésticas próprias e indispensáveis no regime de economia doméstica; (ii) realiza atividades rurais para o consumo próprio ou para comercialização; (iii) a prova da condição do marido/companheiro trabalhador rural, em todas as suas modalidades, aproveita à segurada; (iv) a condição histórica de exclusão e invisibilidade, em uma sociedade patriarcal, impõe mitigação na exigência da prova documental.
2. Não desqualifica o regime de economia familiar, e por reflexo a condição de segurado especial do cônjuge, o exercício de atividade rural na condição de empregado rural. Esse raciocínio já está consolidado na Súmula 41 da Turma Nacional de Uniformização: “A circunstância de um dos integrantes do núcleo familiar desempenhar atividade urbana não implica, por si só, a escaracterização do trabalhador rural como segurado especial, condição que deve ser analisada no caso concreto”. Precedente da TNU pelo aproveitamento da prova da condição de empregado rural como início de prova material da segurada especial (PUIL 0000329-14.2015.4.01.3818MG, re. Juiz Federal Atanair Nasser Ribeiro Lopes, Data do Julgamento 13/12/2019, Data da Publicação 13/12/2019.
3. Indispensável considerar que ao tratarmos da indispensabilidade da atividade rural no regime de economia familiar a realidade é de extrema pobreza, de plantação agrícola de sobrevivência, o que compele membros da família a também exercerem atividades como empregado rural para completar a renda e assegurar a sobrevivência.
4. A solução segue a orientação prevista na Resolução CNJ 492, de 17 de março de 2023, que estabelece a adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário, nos termos das diretrizes do protocolo homônimo.
5. Fixação de tese para o Tema 327: "Constitui início de prova material do exercício de atividade rural a documentação em nome do cônjuge ou companheiro que o qualifica como empregado rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurado especial".
TNU, Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei (Turma) Nº 0040819-60.2014.4.01.3803/MG, Juiz Relator João Carlos Cabrelon de Oliveira, 07/11/2024.
ACÓRDÃO
A Turma Nacional de Uniformização decidiu, por voto de desempate, NEGAR PROVIMENTO AO PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO, nos termos do voto da relatora, Juíza Federal LUCIANA ORTIZ, julgando-o como representativo de controvérsia, com a fixação da seguinte tese para o Tema 327: "Constitui início de prova material do exercício de atividade rural a documentação em nome do cônjuge ou companheiro que o qualifica como empregado rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurado especial". Vencidos os Juízes Federais FABIO DE SOUZA SILVA, CAIO MOYSES DE LIMA, GIOVANI BIGOLIN, LEONARDO CASTANHO MENDES, CAROLINE MEDEIROS E SILVA E RODRIGO RIGAMONTE, que davam provimento ao pedido. Lavrará o acórdão o Juiz Federal João Carlos Cabrelon de Oliveira, sucessor na vaga.
RELATÓRIO
É representativo de controvérsia de n. 327 da Turma Nacional de Uniformização, que tem como desafio: Saber se constitui início de prova material do exercício de atividade rural a documentação em nome do cônjuge que o qualifica como empregado rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurado especial.
O Incidente de Uniformização foi proposto pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) em face de acórdão da lavra da 1ª Turma Recursal da Subseção Judiciária de Uberlândia/MG, que reformou a sentença para conceder a aposentadoria por idade rural à segurada especial, valendo-se, como início de prova material, dos vínculos empregatícios do cônjuge como empregado rural.
Em face da relevância do tema e multiplicidade de demandas, este colegiado decidiu por afetar o tema, a fim de submeter o julgamento ao sistema de representativos de controvérsia (EVENTO 18).
Após publicidade da afetação do Tema 327 (evento 23 – EDITAL1), foi acolhido o interesse de ingresso, como amicus curiae, do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).
Dada a relevância do tema, com repercussão para um grupo de pessoas vulnerabilizadas, foi determinada a intimação da Defensoria Pública da União como custos vulnerabilis a fim de equilibrar a relação processual (EVENTO 39).
O Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP) traz as seguintes reflexões: (i) a jurisprudência há muitos anos reconhece a extensão do documento de uma pessoa da família para outra; (ii) a Jurisprudência do STJ nega a possibilidade de utilização de documentos rurais em nome de membro da família que exerce outra atividade; (iii) a situação é diferente quando os documentos indicam que se trata de empregado rural, como por exemplo a Carteira de Trabalho e Previdência Social; (iv) o julgamento deve ser com perspectiva de gênero, considerando que o trabalho da mulher rural era invisível. Propõe a seguinte tese: Constitui início de prova material do exercício de atividade rural a documentação em nome do cônjuge que o qualifica como empregado rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurado especial de outro membro do grupo familiar, desde que corroborada pela prova testemunhal (EVENTO 41).
A Defensoria Pública da União destacou, inicialmente, a atuação do órgão como custos vulnerabilis pela primeira vez na TNU, enaltecendo a iniciativa que concede voz aos grupos vulnerabilizados. Sustenta que: (i) a Súmula 06 da TNU pacificou o entendimento favorável à utilização da prova emprestada de um cônjuge como trabalhador rural para fins de comprovação da qualidade de segurado especial do outro, estando contempladas todas as formas de labor rural; (ii) esse julgamento precisa ser feito com base na perspectiva de gênero, conferindo proteção previdenciária à mulher segurada especial; (iii) ausência de documentos contemporâneos à época do labor da mulher, tornando quase impossível a produção de prova documental do labor rural como segurada especial; (iv) que da análise histórica, conforme gráfico ilustrativo, denota-se que está em questão não apenas o direito dos trabalhadores do campo, mas da mulher utilizar-se de documentos do grupo família. Pede que seja uniformizado o entendimento e firmada a tese no sentido de reconhecer que a documentação em nome do cônjuge, pai ou pessoa chefe de família que a qualifica como empregado(a) rural, constitui, sim, início de prova material do exercício da atividade rural. (EVENTO 43).
O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) traz as seguintes considerações em seus memoriais: (i) A condição de segurado especial não se confunde com a filiação do empregado rural; (ii) Em um regime de economia familiar, a extensão da prova é possível se envolver documentos de terceiros que se relacionem diretamente com o requerente (como genitores, cônjuge e filhos), que sejam contemporâneos à época do trabalho rural e cujo titular tenha condição de segurado especial no período pretendido; (Iii) Provas documentais que indiquem que um dos cônjuge é empregado rural não podem ser estendidas para a caracterização da condição de segurado especial do outro, pois se trata de filiação diversa da condição de subsistência; (iv) No âmbito jurídico, não se permite o elastecimento indiscriminado da prova, que pode ensejar fraudes e concessões indevidas de benefício previdenciário, cuja contributividade lhe é inerente. Propõe a seguinte tese: "Não constitui início de prova material do exercício de atividade rural a documentação em nome do cônjuge que o qualifica como empregado rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurado especial”.
É o relato do necessário.
VOTO, Juíza Federal Luciana Ortiz Tavares Costa Zanoni
I. Digressões históricas
A Lei n. 4.214, de 2 de março de 1963, conceituava o trabalhador rural como todos aqueles que prestavam serviço para o empregador rural, ou seja, pessoas que tinham uma relação de emprego qualificada como de atividade rural. Essa lei não foi implementada já que nem foi regulamentada. Somente com o Decreto n. 276/67 foi criado o FUNRURAL, com foco mais para a proteção da saúde.
A Lei Complementar 11/1971 definiu o trabalhador rural: § 1º Considera-se trabalhador rural, para os efeitos desta Lei Complementar: a) a pessoa física que presta serviços de natureza rural a empregador, mediante remuneração de qualquer espécie. b) o produtor, proprietário ou não, que sem empregado, trabalhe na atividade rural, individualmente ou em regime de economia familiar, assim entendido o trabalho dos membros da família indispensável à própria subsistência e exercido em condições de mutua dependência e colaboração. Essa lei, ao criar o direito à aposentadoria ao trabalhador rural, previu que: Não será devida a aposentadoria a mais de um componente da unidade familiar, cabendo apenas o benefício ao respectivo chefe ou arrimo.
Portanto, houve um tardamento para inclusão dos trabalhadores rurais no sistema previdenciário no Brasil, com alguns ensaios na década de 70, como a criação do PRORURAL (Lei Complementar n. 11/1971), mas foi somente com a Constituição Federal de 1988 que a Previdência Social passa a contemplar os históricos trabalhadores outsiders, com o reconhecimento do tempo de trabalho rural anterior ao novo marco constitucional sem contribuições previdenciárias, sobretudo no que concerne à trabalhadora do campo.
Contudo, as resistências para essa correção histórica foram e permeiam as decisões políticas. Por isso, em 12.02.1992, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul – Fetag/RS organizou um ato público com mais de 12 mil pessoas, em Porto Alegre, que culminou na ocupação do INSS, por lideranças sindicais que se revezaram semanalmente, permanecendo nas dependências do Instituto durante 51 dias. Segundo informações da Fetag/RS somente após essas manifestações começaram a serem pagos os benefícios às mulheres da roça.1
II. Análise contemporânea
A resistência em reconhecer o direito das mulheres que exerciam atividade rural é injustificada. A Constituição Federal de 1988 assegura a igualdade entre homens e mulheres – ex vi do inciso I do artigo 5º, além do incentivo ao trabalho da mulher (inciso XX do artigo 7º).
A proteção à mulher trabalhadora rural está expressa nas normas constitucionais que cuidam do direito previdenciário aos rurais. O Artigo 195, §8º, do Texto Constitucional, estende a proteção securitária ao cônjuge em atividade rural, ao estabelecer que:
§ 8º O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei (redação da Emenda 20/98 que excluiu o garimpeiro).
Do ponto de vista formal, não há dúvida de que todos os direitos previdenciários assegurados aos rurais homens também o são para as mulheres. Entretanto, indubitável reconhecer que historicamente esse trabalho típico rural da mulher foi ignorado e invisibilizado. A experiência de anos analisando processos previdenciários mostra que os documentos contemporâneos à atividade rural em nome das mulheres são praticamente inexistentes. Para exemplificar, cito as certidões do estado das pessoas que qualificam as mulheres como “do lar”. Também os contratos de arrendamento de terras ou de aquisição, quando consta a mulher, sua qualificação não reflete a mulher trabalhadora rural e sua atividade no campo em mútua colaboração com o cônjuge. Exigir, portanto, uma prova inexistente é negar o próprio direito.
Outras causas podem ser apontadas, como destaco da obra Julgamento com Perspectiva de Gênero:2
Mas há também outros três aspectos que contribuem para essa dificuldade de constituição de prova documental para atestar-se a atividade rural. São eles: i) a excessiva informalidade dos trabalhadores do campo; ii) os índices de analfabetismo elevados, maiores quanto maior a faixa etária; e iii) a cultura institucional ainda profundamente patriarcal e a aplicação de paradigmas masculinos para avaliação de atividades desempenhadas pelas mulheres.
Bem por isso que o entendimento da autarquia previdenciária é, e deve ser, o de que a prova para a atividade do segurado especial é do grupo familiar, o que pode ser aferido pela Portaria n. 170, 25/04/2007, do Ministério da Previdência Social, que retrata entendimento já expresso anteriormente, como na Portaria 4.273, de 19/12/1997. As exigências de prova oscilam nos normativos dessa Pasta, demonstrando a subjetividade que permeia o reconhecimento das lides campesinas, em alguns momentos sendo considerada a suficiência da autodeclaração.3
Essa flutuação no reconhecimento da atividade rural no âmbito administrativo tem levado à judicialização da matéria. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que a prova da condição de segurada especial pode ser feita com documentos em nome de terceiros, conforme recente julgado:
PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. APLICABILIDADE. TRABALHADORA RURAL. INÍCIO DE PROVA MATERIAL. CONFIGURAÇÃO. NÃO INCIDÊNCIA DA S. 7/STJ. ARGUMENTOS INSUFICIENTES PARA DESCONSTITUIR A DECISÃO ATACADA. APLICAÇÃO DE MULTA. ART. 1.021, § 4º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. DESCABIMENTO.
I - Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte na sessão realizada em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do provimento jurisdicional impugnado. In casu, aplica-se o Código de Processo Civil de 2015.
II - Este Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido de que "(...) diante da dificuldade do segurado especial na obtenção de prova escrita do exercício de sua profissão, o rol de documentos hábeis à comprovação do exercício de atividade rural, inscrito no art. 106, parágrafo único, da Lei 8.213/1991, é meramente exemplificativo, e não taxativo, sendo admissíveis outros documentos além dos previstos no mencionado dispositivo, inclusive que estejam em nome de membros do grupo familiar ou ex-patrão." (REsp 1354908/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/09/2015, DJe 10/02/2016).
III - Documentos em nome de terceiros, notadamente genitores, cônjuges e certidão de nascimento de filhos se prestam como início de prova material do labor rurícola, desde que sua força probante seja corroborada por robusta prova testemunhal.
IV - A 1ª Turma desta Corte, recentemente, firmou entendimento no sentido da aceitação de declaração ou carteira de filiação de sindicato rural como início de prova material do exercício do labor rural desde que sua força probante seja ampliada por prova testemunhal.
V - O Agravante não apresenta, no agravo, argumentos suficientes para desconstituir a decisão recorrida.
VI - Em regra, descabe a imposição da multa prevista no art. 1.021, § 4º, do Código de Processo Civil de 2015 em razão do mero desprovimento do Agravo Interno em votação unânime, sendo necessária a configuração da manifesta inadmissibilidade ou improcedência do recurso a autorizar sua aplicação, o que não ocorreu no caso.
VII - Agravo Interno improvido.
(AgInt no REsp 1928406 / SP 2021/0082097-8, rel. Ministra Regina Helena Costa, Data do julgamento 08/09/2021, Data da Publicação 15/09/2021)
Nessa senda, o entendimento consolidado na Súmula 06 da Turma Nacional de Uniformização preconiza: “A certidão de casamento ou outro documento idôneo que evidencie a condição de trabalhador rural do cônjuge constitui início razoável de prova material da atividade rurícola”. Este Colegiado também decidiu que: No caso de aposentadoria por idade rural, a certidão de casamento vale como início de prova material, ainda que extemporânea. Na certidão de casamento (ou certidão de nascimento dos filhos comuns) comumente consta o marido como lavrador e a mulher como “do lar”, de forma que a anotação de atividade campesina aproveita para o reconhecimento do labor da mulher.
A proteção constitucional não pode significar letra morta. O esforço do Constituinte de 1988 foi o de contemplar uma população excluída da proteção securitária. É uma escolha política com reflexos na diminuição da pobreza e significância política de uma classe excluída. Embora não seja o único fator da queda da desigualdade a partir do novo ordenamento jurídico constitucional (pelo menos até a primeira década do século XXI), constitui fator a ser considerado, conforme ensina Marta Arretche, em seu clássico texto Democracia e redução da desigualdade econômica no Brasil: a inclusão dos outsiders, cujo trecho de relevância destaco:
A queda da desigualdade econômica é explicada – repito, não exclusivamente – por políticas de inclusão dos outsiders, cuja origem data da CF de 1988. Esta garantiu transferências monetárias vinculadas ao valor do salário mínimo para trabalhadores com inserção precária no mercado de trabalho. Também teve impacto sobre a desigualdade entre os cidadãos, ao eliminar a barreira de titularidade produzida pelo regime conservador de política social adotado nos anos de 1930, que vinculava o direito à previdência e à saúde à inserção no mercado formal de trabalho. Esse foi um processo de inclusão dos outsiders.
Essa escolha política, com reflexos nos processos democráticos, deve contemplar materialmente a transposição histórica das barreiras de inclusão. É preciso dar concretude aos direitos subjetivos constitucionais. A efetividade assegura a implementação de direitos subjetivos plasmados na Constituição. Luís Roberto Barroso assinala que a doutrina da efetividade consiste em: todas as normas constitucionais são dotadas de eficácia e veiculadoras de comandos imperativos. Nas hipóteses em que tenham criado direitos subjetivos – políticos, individuais, sociais ou difusos – são elas, como regra, direta e imediatamente exigíveis, do Poder Público ou do particular, por via das ações constitucionais e infraconstitucionais contempladas no ordenamento jurídico. O Poder Judiciário, como consequência, passa a ter papel ativo e decisivo na concretização da Constituição.4
A oscilação no entendimento da Administração Pública na exigência de documentação da prova do trabalho, afeta, pelas razões históricas de exclusão, à mulher mais fortemente, conforme estudo de Ana Cecília Kreter, conforme a seguinte conclusão do artigo:5
O artigo verificou que quanto maior a burocracia, maior a dificuldade da trabalhadora rural se inserir no sistema previdenciário. A comprovação de tal sensibilidade pode ser observada tanto com a promulgação das Leis nº 8.212 e nº 8.213, de 1991, como com a alteração da documentação exigida para o requerimento da aposentadoria por idade em 1994. As mulheres, em geral, tendem a ser mais suscetíveis às mudanças na legislação, e as rurais, mais que as urbanas.
Os abismos entre a previsão constitucional e a efetividade da norma constitucional, que erigiu a mulher à titular de benefício pelo seu trabalho em regime de economia familiar, são destacados por Luciane Merlin Cléve Kravetz e Tania Maria Wurster:6
Ou seja, no arranjo institucional, que criou um modelo especial de concessão de benefícios previdenciários aos trabalhadores rurais caracterizados como segurados especiais, fundamentado na proteção do trabalho desenvolvido sob o regime de economia familiar, embora protetivo do trabalhador rural numa das cadeias de maior vulnerabilidade, impõe consequências quanto ao ônus da prova, que impacta de modo especial a mulher trabalhadora.
O trabalho da mulher rural, por não criar bens tangíveis que possam ser comprados, é considerado apenas como auxiliar e não é visto como essencial à subsistência do grupo familiar, o que impede sua qualificação como segurada especial, e, consequentemente, o acesso à aposentadoria.
O fato de a mulher exercer trabalhos domésticos, como preparo da comida, limpeza da casa, cuidado com os filhos, mas também preparo de produtos agropecuários, negligencia-se o seu contributo ao regime de economia familiar. Na já citada obra Julgamento com Perspectiva de Gênero, destaca-se essa simbiose de atividades invisíveis, mas também o fato de que o labor da mulher não se restringe a essa dimensão doméstica e auxiliar. Como a atividade da mulher campesina envolve o trabalho dentro do domicílio, as adjacências da casa terminam por envolver uma órbita de labor intenso, que abarca o cultivo de hortas e de pomares e mesmo a criação de pequenos animais como galinhas e porcos – itens fundamentais para consumo e subsistência do grupo familiar. Essas são dimensões de trabalho ainda mais negligenciadas ante a simplificação do labor da família campesina em lavoura e/ou pastoreio de destinação comercial, majoritariamente postos sob a liderança masculina, e trabalho doméstico, de preponderante atribuição feminina .7
Ademais, protocolos internacionais reconhecem essa ligação da mulher com o campo, destacando sua importância inclusive nas questões ambientais, como apontado por Inês Virgínia Prado Soares e Sandra Cureaus:8
Importantes documentos internacionais, desde 1979, têm disposto expressamente sobre a igualdade de gênero, reconhecendo o papel significativo que as mulheres do meio rural desempenham na sobrevivência econômica de suas famílias e que suas atividades se baseiam, em grande parte, no respeito e preservação dos ecossistemas: a Convenção da Mulher entrou em vigor em 1981; a Declaração de Viena, em 1993; e a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como "Rio-92", em 1992.Nesta última, dois documentos relevam em importância: a Agenda 21, que buscou estabelecer objetivos claros que protegessem, incentivassem e implementassem as estratégias conservacionistas propostas pelas mulheres, e a declaração "O Futuro que Queremos", que destinou uma gama de artigos para destacar o valor das atitudes femininas ligadas à natureza, reconhecendo, enfaticamente, a sua posição de liderança e promovendo a participação plena da mulher na gestão do meio ambiente.
Assim, indubitável que é preciso considerar esses aspectos históricos de exclusão para se concluir que a segurada especial (i) desempenha atividades domésticas próprias e indispensáveis no regime de economia doméstica; (ii) realiza atividades rurais para o consumo próprio ou para comercialização; (iii) a prova da condição do marido/companheiro trabalhador rural, em todas as suas modalidades, aproveita à segurada; (iv) a condição histórica de exclusão e invisibilidade, em uma sociedade patriarcal, impõe mitigação na exigência da prova documental.
Com essas considerações, acolho para análise do presente representativo de controvérsia a orientação prevista na Resolução 492 do Conselho Nacional de Justiça, que estabelece a adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário, nos termos das diretrizes do protocolo homônimo.
Feitas essas necessárias ponderações, adentro no ponto específico do Tema 327, para buscar uma solução para a seguinte questão: Saber se constitui início de prova material do exercício de atividade rural a documentação em nome do cônjuge que o qualifica como empregado rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurado especial.
De pronto assinalo que não desqualifica o regime de economia familiar, e por reflexo a condição de segurado especial do cônjuge, o exercício de atividade rural na condição de empregado rural. Esse raciocínio já está consolidado na Súmula 41 da Turma Nacional de Uniformização: “A circunstância de um dos integrantes do núcleo familiar desempenhar atividade urbana não implica, por si só, a escaracterização do trabalhador rural como segurado especial, condição que deve ser analisada no caso concreto”. Ora, se atividade urbana não tem o condão de por si só desconstituir o trabalho em regime de economia familiar o empregado rural com maior razão também não o tem.
A vida no campo tem uma simbiose de modalidades de atividades campesinas. Os trabalhadores rurais podem ser empregados rurais, autônomos, avulsos e segurados especiais. É preciso considerar que essas espécies de trabalhadores rurais estão umbilicalmente ligadas, estando o segurado classificado em uma ou outra espécie, por mais das vezes, a partir do cumprimento pelo empregador dos direitos trabalhistas. Nesse sentido, é comum o empregado rural sem qualquer vínculo formal ser classificado como segurado especial, ou classificá-lo como boia-fria com exigência de contribuições previdenciárias como autônomo. O fato é que tais atividades estão umbilicalmente ligadas. O próprio INSS ao regulamentar o artigo constitucional e legal expandiu as hipóteses para incluir quilombolas, seringueiros, entre outros (por exemplo, na Instrução Normativa 128/22).
Nessa tentativa de refletir a realidade do campo, o artigo 9º, §8º, do Decreto n. 3.048/99, arrola situações que afastam o regime de economia familiar, entre as quais não está a de empregado rural, sendo descaracterizada a condição de segurado especial apenas a atividade urbana com vínculo superior a 120 dias, e mesmo assim a consequência é a exclusão do período do cômputo do tempo de serviço rural.
De forma que a situação do trabalho em regime de economia familiar pode conviver com a situação de um dos membros da família ter vínculos como empregado rural. Esse fato revela, pelo contrário, que o grupo familiar está atrelado às lides rurais. É bastante comum que em entressafras o empregado rural tenha rescindido (ou já é contratado de forma temporária) o seu emprego rural, vive e se dedica então à sua terra, seja para produção para o sustento próprio e de sua família, seja para comercializar o eventual excedente da produção. Ou seja, exige-se apenas a indispensabilidade da atividade rural em regime rural para a sobrevivência do grupo familiar.
Indispensável considerar que ao tratarmos da indispensabilidade da atividade rural no regime de economia familiar a realidade é de extrema pobreza, de plantação agrícola de sobrevivência, o que compele membros da família a também exercerem atividades como empregado rural para completar a renda e assegurar a sobrevivência. A recíproca também é visível, o empregado rural junto com sua família mantém a produção rural em colaboração para consumo do grupo, dado que o salário é insuficiente para assegurar o sustento. Nesse sentido, plenamente legitimo, nos termos da proteção constitucional, que a segurada especial, valha-se do documento do cônjuge como empregado rural como início de prova documental.
Pondere-se que o desafio do Tema 327 não é a prova do regime de segurada especial, mas o início de prova material, que deverá vir corroborada com prova testemunhal harmônica e robusta. Nesse sentido, o emprego rural constitui forte demonstração de que o grupo familiar está enraizado em lides rurais, o que exige, na ausência de outras provas, que a prova testemunhal seja firme e uniforme para comprovar a atividade da segurada especial em regime de economia familiar.
III. Jurisprudência
A jurisprudência pronunciou-se reiteradamente pelo aproveitamento da prova do emprego rural como início de prova material do regime de economia familiar do outro cônjuge, conforme ementas que transcrevo:
PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA RURAL POR IDADE. BOIA-FRIA. REQUISITOS LEGAIS. COMPROVAÇÃO. SÚMULA 149 DO STJ. PROVA MATERIAL. INÍCIO. CERTIDÕES DE ATO DE REGISTRO CIVIL. POSSIBILIDADE. TESE RECURSAL. REEXAME DE PROVA. IMPOSSIBILIDADE. ÓBICE DA SÚMULA 7/STJ.
1. Hipótese em que o Tribunal de origem consignou: "Do que consta nos autos, a sobrevivência da família nos mais de seis anos restantes, e em todo o tempo que se seguiu após 1998, foi obtida com o trabalho na roça. Portanto, não há como deixar de concluir que o cônjuge da requerente, na verdade, é trabalhador rural que eventualmente exerceu serviço classificado como 'urbano' e não o contrário, o que convalida a extensão da prova produzida em nome do marido, para a autora"(fls. 144-145, e-STJ, grifo acrescentado).
2. É inviável analisar a tese defendida no Recurso Especial, a qual busca afastar as premissas fáticas estabelecidas pelo acórdão recorrido, pois inarredável a revisão do conjunto probatório dos autos. Aplica-se o óbice da Súmula 7/STJ.
3. Agravo Regimental não provido.
AgRg no REsp 1549731 / PR, 2015/0203273-4, rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, T2 - SEGUNDA TURMA, Data do julgamento 03/11/2015, Data da publicação DJe 20/11/2015.
Este Colegiado também já se manifestou sobre o tema, em voto da lavra do Juiz Federal Atanair Nasser Ribeiro Lopes, que embora não tenha conhecido do incidente, manifestou-se acerca do tema:
Cuida-se de pedido de uniformização interposto pelo INSS sob o argumento de que a prova material consistente em vínculos empregatícios como empregado rural do marido da autora não lhe seriam extensíveis por não representarem exercício de atividade rural em regime de economia familiar. Sustentou como paradigma o Pedilef n. 200970530013830 e o AgRg no AREsp n. 576345. A Presidência proveu o agravo e admitiu o incidente.
Contudo, não prospera a irresignação. O precedente citado do STJ diz respeito ao empregado urbano e não ao empregado rural, que constitui a hipótese dos autos, de modo a não servir como paradigma. Além do mais, pacífica a jurisprudência da Corte Superior em sentido diverso: “permite-se a extensão dessa qualidade do marido à esposa, ou até mesmo dos pais aos filhos, ou seja, são extensíveis os documentos em que os genitores, os cônjuges, ou conviventes, aparecem qualificados como lavradores, ainda que o desempenho da atividade campesina não tenha se dado sob o regime de economia familiar”. (STJ, REsp n. 1.845.585 – SP, rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES).
É que o vínculo em questão demonstra a condição rurícola da entidade familiar, evidenciando situação por demais comum no meio campesino, que se caracteriza pela contratação do homem formalmente, mas não da mulher, que é mantida numa espécie de condição "acessória", indigna à sua individualidade e direitos. Daí que reproduzir esse contexto desumano nada mais seria que perpetuar uma situação degradante ou dar a ela um valor medíocre não correspondente à realidade. Por isso mesmo, o precedente invocado desta Corte está demasiadamente ultrapassado, não representando o atual estágio de compreensão da Turma Nacional, notadamente depois do REsp repetitivo julgado no STJ:
RECURSO ESPECIAL. MATÉRIA REPETITIVA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ 8/2008. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. TRABALHO RURAL. ARTS. 11, VI, E 143 DA LEI 8.213/1991. SEGURADO ESPECIAL. CONFIGURAÇÃO JURÍDICA. TRABALHO URBANO DE INTEGRANTE DO GRUPO FAMILIAR. REPERCUSSÃO. NECESSIDADE DE PROVA MATERIAL EM NOME DO MESMO MEMBRO. EXTENSIBILIDADE PREJUDICADA.
1. Trata-se de Recurso Especial do INSS com o escopo de desfazer a caracterização da qualidade de segurada especial da recorrida, em razão do trabalho urbano de seu cônjuge, e, com isso, indeferir a aposentadoria prevista no art. 143 da Lei 8.213/1991.
2. A solução integral da controvérsia, com fundamento suficiente, não evidencia ofensa ao art. 535 do CPC.
3. O trabalho urbano de um dos membros do grupo familiar não descaracteriza, por si só, os demais integrantes como segurados especiais, devendo ser averiguada a dispensabilidade do trabalho rural para a subsistência do grupo familiar, incumbência esta das instâncias ordinárias (Súmula 7/STJ).
4. Em exceção à regra geral fixada no item anterior, a extensão de prova material em nome de um integrante do núcleo familiar a outro não é possível quando aquele passa a exercer trabalho incompatível com o labor rurícola, como o de natureza urbana.
5. No caso concreto, o Tribunal de origem considerou algumas provas em nome do marido da recorrida, que passou a exercer atividade urbana, mas estabeleceu que fora juntada prova material em nome desta em período imediatamente anterior ao implemento do requisito etário e em lapso suficiente ao cumprimento da carência, o que está em conformidade com os parâmetros estabelecidos na presente decisão.
6. Recurso Especial do INSS não provido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução 8/2008 do STJ. (REsp 1304479/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/10/2012, DJe 19/12/2012)
Não fosse bastante, a sentença mantida pelo acórdão impugnado mencionou outros documentos e situações que não possíveis de desprezar:
Compulsando os autos, verifico a presença da seguinte prova documental: Certidão de nascimento da autora na Fazenda Contendas (fl. 11); certidão de nascimento da filha da autora com o seu companheiro, José Carlos Marques de Oliveira, indicando a profissão do pai como lavrador (fl. 12); CTPS do companheiro da autora, apontando vários vínculos como empregado rural (fls. 15/19); CNIS do. companheiro da autora, demonstrando a sua condição de aposentado como empregado rural (fl. 20). Além disso, em audiência, a autora afirmou que há quinze anos trabalha na Agropecuária Fazendão, fazendo a coleta dos restos de milho que sobram da colheita-mecanizada, partindo a produção com o proprietário da fazenda. Antes desse período, afirmou que trabalhava na Fazenda Contendas, na colheita de café. Corroborando o depoimento da autora, a testemunha ouvida em audiência. foi firme em dizer que conhece a autora desde 1978, quando ela morava na Fazenda Contendas. Sabe dizer, ainda, que autora sempre laborou no meio rural e que atualmente faz a catação de milhos na lavoura à meia, atividade suficiente apenas para prover as despesas do lar.
Ante o exposto, voto por NÃO CONHECER DO INCIDENTE.
(PUIL 0000329-14.2015.4.01.3818MG, re. Juiz Federal Atanair Nasser Ribeiro Lopes, Data do Julgamento 13/12/2019, Data da Publicação 13/12/2019)
No âmbito da TNU, destaco ainda o PUIL 00016622420074036308, da lavra do Juiz Federal Carlos Wagner Dias Ferreira, Data do julgamento 12/05/2016, Data da Publicação 27/09/2016, no qual restou conhecido e provido para determinar o retorno dos autos à Turma Recursal de origem, para fins de examinar a causa com a adequação do julgado ao entendimento da TNU, conforme a premissa jurídica ora fixada, de que a qualidade de empregado rural de um dos membros do grupo familiar não descaracteriza, por si só, os demais integrantes como segurados especiais.
Também os Tribunais Regionais Federal têm julgado nesse sentido:
PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR IDADE A TRABALHADORA RURAL. ART. 143 DA LEI N.º 8.213/91. COMPROVAÇÃO DA ATIVIDADE DE RURÍCOLA NO PERÍODO ANTERIOR AO REQUERIMENTO. CONCESSÃO DO BENEFÍCIO.
- A atividade rural deve ser comprovada por meio de início de prova material, aliada à prova testemunhal.
- O conjunto probatório é suficiente para ensejar a concessão do benefício vindicado.
- Reconhecimento da procedência do pedido formulado.
(TRF3 APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 622539762.2019.4.03.9999, RELATOR: Gab. 27 - DES. FED. THEREZINHA CAZERTA)
Extraio do Julgado:
Consta dos autos o comprovante de que o benefício de aposentadoria por idade rural requerido pela autora em 07/04/2017 foi indeferido na esfera administrativa.
Da consulta atualizada ao Sistema CNIS da Previdência Social, em nome da autora, não constam registros de atividades laborativas, o que se coaduna com as alegações da requerente, de que sempre trabalhou sem registro.
Embora não conste do referido Sistema vínculo da demandante em atividade rural, também não há registros de atividades urbanas em seu nome.
Cumpre mencionar que, mesmo sendo o marido empregado rural com registro em CTPS, a jurisprudência admite a extensão da condição à esposa, no pressuposto de que o trabalho desenvolvido pela mulher, diante da situação peculiarmente difícil no campo, se dê em auxílio a seu cônjuge, visando aumento de renda para obter melhores condições de sobrevivência.
E é de sabença comum que, vivendo na zona rural, a família trabalha em mútua colaboração, reforçando a capacidade laborativa, de modo a alcançar superiores resultados, retirando da terra o seu sustento.
PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. EFEITOS. ATIVIDADE RURAL EM REGIME DE ECONOMIA FAMILIAR. TRABALHADOR ASSALARIADO EVENTUAL. QUALIDADE DE SEGURADO ESPECIAL COMPROVADA. APOSENTADORIA RURAL POR IDADE. REQUISITOS PREENCHIDOS. DIREITO ADQUIRIDO. CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. CUSTAS PROCESSUAIS. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. REQUISITOS. 1. (...) 2. O tempo de serviço rural para fins previdenciários pode ser demonstrado através de início de prova material, desde que complementado por prova testemunhal idônea. Precedentes da Terceira Seção desta Corte e do egrégio STJ. 3. Não se exige a comprovação da atividade rural ano a ano, de forma contínua. Início de prova material não há que ser prova cabal; trata-se de algum registro por escrito que possa estabelecer liame entre o universo fático e aquilo que expresso pela testemunhal. 4. O comando legal determina início de prova material do exercício de atividades agrícolas e não prova plena (ou completa) de todo o período alegado, pois a interpretação aplicável, quanto ao ônus da prova, não pode ser aquela com sentido inviabilizador, desconectado da realidade social. 5. Inexiste na legislação previdenciária qualquer menção à extensão da propriedade ou sua localização em zona rural como elementos necessários ao reconhecimento da prestação de labor rural em regime de economia familiar. 6. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que o tamanho da propriedade rural não é capaz de descaracterizar o regime de economia familiar e a condição de segurado especial se preenchidos os demais requisitos necessários à sua configuração, quais sejam: ausência de empregados e a mútua dependência e colaboração da família no campo, o que ocorreu no caso. 7. O auxílio de terceiros (vizinhos, boias-frias) em determinados períodos não elide o direito postulado, consoante o inciso VII do art. 11 da Lei n° 8.213/91, visto que se trata de prática comum no meio rural. 8. O fato de a cônjuge do autor perceber benefício de Aposentadoria por Idade Rural, como trabalhadora rural, na condição de segurada especial, no valor de um salário mínimo, não desqualifica a condição de segurado especial do autor, uma vez que demonstrado nos autos que a indigitada remuneração não era suficiente para tornar dispensável o labor agrícola desempenhado pelo núcleo familiar e em caráter individual. 9. A contemporaneidade entre a prova documental e o período de labor rural equivalente à carência não é exigência legal, de forma que podem ser aceitos documentos que não correspondam precisamente ao intervalo necessário a comprovar. Precedentes do STJ. 10. Aplicável a regra de transição contida no artigo 142 da Lei n.º 8.213/91 aos filiados ao RGPS antes de 24-07-1991, desnecessária a manutenção da qualidade de segurado na data da Lei n.° 8.213/91. 11. Restando comprovado nos autos o requisito etário e o exercício da atividade laborativa rural no período de carência, há de ser concedida a aposentadoria por idade rural, à parte autora a contar do requerimento administrativo, nos termos da Lei n.º 8.213/91, desimportando se depois disso houve perda da qualidade de segurado (art. 102, § 1º da LB). 12. Demanda isenta de custas processuais, a teor do disposto na Lei Estadual n.º 13.741/2010, que deu nova redação ao art. 11 da Lei Estadual n.º 8.121/85. 13. Atendidos os pressupostos do art. 273 do CPC - a verossimilhança do direito alegado e o fundado receio de dano irreparável -, é de ser mantida a antecipação da tutela anteriormente concedida.
(TRF4, Apelação cível 0009673-58.2011.4.04.9999, rel. João Batista Pinto Silveira, Data do Julgamento 17/10/2012, Data da Publicação 24/10/2012).
APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO PREVIDENCIÁRIO - APOSENTADORIA RURAL POR IDADE - EXERCÍCIO DE ATIVIDADE RURAL - INÍCIO DE PROVA DOCUMENTAL CORROBORADO POR PROVA TESTEMUNHAL - QUALIDADE DE SEGURADA ESPECIAL - RECURSO PROVIDO. I - Faz jus a autora à obtenção de benefício aposentadoria por idade, uma vez que o documento acostado aos autos, em conjunto com a prova testemunhal, mostra-se suficiente para comprovar o exercício de atividade rurícola; II - A existência de vínculos empregatícios urbanos, no caso, o trabalho como empregado rural do marido, por si só, não afasta a presunção de que autora tenha exercido atividade rural em regime de economia familiar, mesmo porque está devidamente comprovado nos autos; III - Apelação provida.
(TRF2, processo 0002096-73.2017.4.02.9999, relator Antonio Ivan Athié, Data de julgamento 11/04/2019, Data da Publicação 24/04/2019)
IV. Solução
A solução segue a orientação prevista na Resolução CNJ n.492, de 17 de março de 2023, que estabelece a adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário, nos termos das diretrizes do protocolo homônimo.
Assim, alinhando a perspectiva de gênero aos argumentos e precedentes expostos, afirma-se que a condição de empregado rural do cônjuge da segurada especial não desqualifica o regime de economia familiar, pelo contrário, a vida no campo depende do trabalho da mulher para o sustento do grupo familiar, sendo de rigor reconhecer que o vínculo empregatício rural do cônjuge constitui início de prova material da vida em lides campesinas da família.
O julgamento sob a perspectiva de gênero embasa o alargamento pro marido, ao lançar luzes para a necessidade de tratamento equânime entre homens e mulheres. Desse modo, os cônjuges devem ser vistos como iguais.
Proponho ao colegiado a fixação da seguinte tese: Constitui início de prova material do exercício de atividade rural a documentação em nome do cônjuge ou companheiro que o qualifica como empregado rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurado especial.
O acórdão impugnado não dissentiu do entendimento da tese fixada, devendo ser mantido na integralidade.
Ante o exposto, voto por NEGAR PROVIMENTO ao Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei, fixando a seguinte tese: Constitui início de prova material do exercício de atividade rural a documentação em nome do cônjuge ou companheiro que o qualifica como empregado rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurado especial.
VOTO-VISTA, Juiz Federal Fábio Souza
Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal (PUIL) interposto pelo INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL (INSS) contra acórdão da Turma Recursal da Subseção Judiciária de Uberlândia-MG, que julgou procedente pedido de condenação da autarquia a conceder aposentadoria por idade rural.
O acórdão recorrido considerou os “vínculos rurais do esposo” como “início suficiente de prova material, tornando necessário avaliar a robustez da prova testemunhal e sua aptidão para, junto àquele elemento, constituir prova da condição de rurícola da recorrente”.
Na sessão de julgamento de 19 de abril de 2023, a Turma Nacional de Uniformização (TNU) decidiu conhecer do pedido de uniformização e afetá-lo como representativo de controvérsia, com a seguinte questão controvertida:
Saber se constitui início de prova material do exercício de atividade rural a documentação em nome do cônjuge que o qualifica como empregado rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurado especial.
Em seu magistral voto, a Juíza Federal Relatora, Dra. Luciana Ortiz Tavares Costa Zanoni, nega provimento ao incidente e propõe a seguinte tese como solução para a controvérsia:
Constitui início de prova material do exercício de atividade rural a documentação em nome do cônjuge ou companheiro que o qualifica como empregado rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurado especial.
Apesar dos relevantes argumentos que fundamentam o voto da Relatora, o caso em análise apresenta peculiaridades, que justificam algumas considerações adicionais.
Julgamento com Perspectiva de Gênero
A dificuldade probatória do trabalhador rural ganha contornos ainda mais desafiadores para as mulheres trabalhadoras rurais. A intensa desigualdade entre gêneros no mercado de trabalho apresenta-se de modo ainda mais explícito na atividade rural. A questão foi extremamente bem abordada no brilhante voto da Relatora, que destacou a necessidade deste julgamento ocorrer com perspectiva de gênero.
Vale destacar que a jurisprudência não é insensível a essa realidade, sendo percebida uma gradual – embora lenta – incorporação da perspectiva de gênero nas construções pretorianas. Como exemplo, é possível citar a súmula 6 da TNU, quando estabelece que “a certidão de casamento ou outro documento idôneo que evidencie a condição de trabalhador rural do cônjuge constitui início razoável de prova material da atividade rurícola”.
A própria Advocacia-Geral da União (AGU) editou súmula, reconhecendo a possibilidade de aproveitamento de início de prova material de cônjuge e companheiro:
Súmula 32 da TNU: Para fins de concessão dos benefícios dispostos nos artigos 39, inciso I e seu parágrafo único, e 143 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, serão considerados como início razoável de prova material documentos públicos e particulares dotados de fé pública, desde que não contenham rasuras ou retificações recentes, nos quais conste expressamente a qualificação do segurado, de seu cônjuge, enquanto casado, ou companheiro, enquanto durar a união estável, ou de seu ascendente, enquanto dependente deste, como rurícola, lavrador ou agricultor, salvo a existência de prova em contrário.
Importante enfatizar que “é tranquilo o entendimento no STJ de que é extensível a qualificação rural de cônjuge em certidão pública, assim como em outras provas materiais, ao trabalhador que pretende configurar-se segurado especial.” (AgRg no AREsp n. 188.059/MG, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 4/9/2012, DJe de 11/9/2012)
Os casos concretos analisados no cotidiano judicial demonstram que a documentação da atividade rural, na grande maioria dos casos, consta em nome do cônjuge homem, sendo a possibilidade de aproveitamento indicado nos precedentes acima, uma tentativa de aproximar as oportunidades probatórias das trabalhadoras rurais.
Entretanto, a jurisprudência impõe alguns limites à extensão da prova em nome de outro integrante do núcleo familiar, como se infere na tese firmada pelo STJ no julgamento do tema repetitivo 533:
Tema 533 STJ: Em exceção à regra geral (...), a extensão de prova material em nome de um integrante do núcleo familiar a outro não é possível quando aquele passa a exercer trabalho incompatível com o labor rurícola, como o de natureza urbana.
É válido transcrever fragmento do voto do Relator do REsp nº 1304479/SP, afetado ao Tema 533, Ministro Herman Benjamin:
Ultrapassada a questão acima fixada, emerge a análise valorativa do início de prova material em nome de componente do grupo familiar que passa a exercer trabalho incompatível com o regime de economia familiar. Fato muito comum é a hipótese da esposa que apresenta documentos em que o marido é qualificado como trabalhador rural, mas este posteriormente passa a laborar no meio urbano.
Assim como é tranquilo nesta Corte Superior o entendimento pela possibilidade da extensão da prova material em nome de um cônjuge ao outro, é também firme a jurisprudência que estabelece a impossibilidade de estender a prova em nome do consorte que passa a exercer trabalho urbano, devendo ser apresentada prova material em nome próprio.
A lógica que se extrai do precedente é que o aproveitamento da prova em nome do cônjuge ou companheiro é impossível quando o elemento probatório não puder ser aproveitado, sequer, pela própria pessoa referida na prova.
É nesse ponto que reside a dificuldade de se admitir que a prova do emprego rural de um trabalhador seja útil à comprovação da qualidade de segurado especial do seu cônjuge ou companheiro. Afinal, se os elementos probatórios afastam a caracterização do trabalhador como segurado especial, como podem servir de início de prova material do execício dessa atividade por seu cônjuge ou companheiro?
Prova da atividade de segurado especial
Como estabelece o art. 11, VII, da Lei 8.213/91, o reconhecimento da qualidade de segurado especial exige a comprovação da condição de pescador artesanal ou produtor rural que explore atividade agropecuária ou extrativista, em regime de economia familiar. A categoria também abrange o cônjuge ou companheiro, bem como filho maior de 16 anos de idade que, comprovadamente, trabalhem com o grupo familiar respectivo.
Para tanto, é fundamental demonstrar que “o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados permanentes”, como exige o § 1º, do art. 11, da Lei 8.213/91.
Isso significa que, para a caracterização da condição de segurado especial, não basta a comprovação do trabalho rural, sendo essencial a prova de que o trabalho ocorreu em regime de economia familiar. Apenas nesse caso haverá autorização constitucional para o tratamento tributário diferenciado, previsto no art. 195, § 8º, da CF, que justifica a dispensa de um número mínimo de contribuições mensais para concessão de benefícios previdenciários, na forma do art. 39, da Lei 8.213/91.
É fundamental, portanto, demonstrar que a subsistência da família decorre da produção rural e, não, de outras fontes de renda, ressalvados os casos expressamente autorizados pelo legislador nos §§ 8º e 9º, do art. 11, da Lei 8.213/91.
Assim, se um membro familiar possuir vínculo empregatício e sua renda garantir o sustento da família, tornando dispensável o rendimento da produção rural, fica descaracterizado o regime de economia familiar, devendo os demais integrantes da família ser enquadrados como contribuintes individuais, nos termos do art. 11, § 5º, a, da Lei 8.213/91.
Evidentemente, como já assentado pela jurisprudência da TNU e do STJ, caso a renda do empregado não seja suficiente para dispensar o rendimento da produção rural no sustento da família, não restará descaracterizada a condição de segurado especial dos demais trabalhadores:
Súmula 41 TNU: A circunstância de um dos integrantes do núcleo familiar desempenhar atividade urbana não implica, por si só, a descaracterização do trabalhador rural como segurado especial, condição que deve ser analisada no caso concreto.
Tema 532 STJ: O trabalho urbano de um dos membros do grupo familiar não descaracteriza, por si só, os demais integrantes como segurados especiais, devendo ser averiguada a dispensabilidade do trabalho rural para a subsistência do grupo familiar, incumbência esta das instâncias ordinárias (Súmula 7/STJ).
O raciocínio não se modifica seja o vínculo de emprego urbano ou rural, que aliás, são abrangidos pelo mesmo dispositivo legal, na caracterização da espécie de segurados:
Art. 11. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas:
I - como empregado:
a) aquele que presta serviço de natureza urbana ou rural à empresa, em caráter não eventual, sob sua subordinação e mediante remuneração, inclusive como diretor empregado;
A renda do empregado rural não decorre da venda da produção, mas do salário que é devido pelo empregador, independentemente do resultado da produção rural. Em outras palavras, o empregado rural, embora trabalhe no campo, é remunerado por salário. O risco da atividade é todo do empregador; havendo ou não venda da produção, o salário continua devido ao empregado rural.
Pedindo vênia a compreensões distintas, o fato é que vínculos de emprego, ainda que de natureza rural, não oferecem qualquer indício de que a família do empregado desenvolve atividade rural em regime de economia familiar. São eventos absolutamente distintos e autônomos, sendo inviável deduzir uma atividade pela prova da outra.
Como exemplo, observe-se a descrição fática do caso concreto, contida no seguinte fragmento do acórdão recorrido:
E a demandante apresentou, a título de início de prova material, cópia da sua CTPS, em que consta apenas uma anotação, de vínculo de natureza rural e apenas cinco dias de duração; e o extrato do Cadastro Nacional de Informações Sociais de seu esposo, Valdivino José de Faria, em que se verifica que ele manteve diversos vínculos de natureza rural no período dentre 12/11/1985 a 17/10/2004.
As informações no CNIS sobre o emprego rural do marido não são capazes de fornecer sequer um indício dee que sua esposa seja produtora rural em regime de economia familiar. É perfeitamente possível que uma pessoa trabalhe como empregado de uma fazenda, sem que isso permita chegar a qualquer inferência a respeito da atividade de sua família.
Na realidade, o trabalho como empregado rural pode, justamente, descaracterizar a qualidade de segurado especial do restante dos membros da família, caso fique demonstrado que o seu sustento decorre do salário do segurado empregado.
Portanto, para o enquadramento do cônjuge e demais membros da família como segurados especiais, deverá ser demonstrado que a sua subsistência é garantida pela produção rural familiar da qual participam, que se desenvolve do modo independente do trabalho do empregado rural.
Insiste-se: o fato de um segurado ser empregado de um produtor rural não auxilia na prova da atividade do cônjuge ou companheiro na produção em regime de economia familiar.
Diante dessas considerações, proponho a fixação da seguinte tese em resposta à questão jurídica afetada ao tema 327 desta TNU:
A documentação em nome do cônjuge ou companheiro que o qualifique como empregado rural não constitui início de prova material de tempo de trabalho na condição de segurado especial.
Ante o exposto, voto por DAR PROVIMENTO ao Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei, determinando o retorno dos autos à Turma Recursal de origem, para adequação do julgamento à seguinte tese: "a documentação em nome do cônjuge ou companheiro que o qualifique como empregado rural não constitui início de prova material de tempo de trabalho na condição de segurado especial".
VOTO, Presidente da Turma Nacional de Uniformização Ministro Moura Ribeiro
Trata-se de pedido de uniformização nacional interposto pelo INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL (INSS) contra acórdão proferido por Turma Recursal da Subseção Judiciária de Uberlândia-MG que julgou procedente o pleito de concessão do benefício de aposentadoria por idade rural.
Devidamente processado e regularmente instruído o feito, sobreveio sentença que rejeitou o pedido ao fundamento de que as provas colacionadas pela parte autora não constituíram início de prova material apto à demonstrar a sua qualidade de segurada especial.
Eis, no que interessa, os fundamentos da sentença:
(...)
Os vínculos em nome de seu marido anotados no CNIS de fl. 18 não lhe são extensíveis, eis que ele era segurado empregado, espécie de relação que somente se estabelece formalmente entre as partes da relação de trabalho. Em audiência, informou ter morado e trabalhado nas terras da Sra. Constância, do Sr. Raulino, do Sr. Carvalhais e do Sr. Armando, entre outros, sem, todavia, fazer prova documental alguma do quanto alegado, sendo insuficientes a simples confirmação de seu depoimento pelas testemunhas. (...)
A turma recursal originária, dando provimento ao recurso inominado da demandante, reformou a sentença e condenou o INSS à concessão da aposentadoria pleiteada, admitindo, para tanto, como início de prova material as anotações de vínculos rurais constantes na CTPS do cônjuge da autora:
(...)
11. E Embora exista controvérsia sobre a possibilidade de o segurado especial utilizar, como início de prova material, os documentos em nome do seu cônjuge, quando este último for qualificado como "empregado rural", esta Turma Recursal firmou entendimento no sentido da sua possibilidade. (...)
Em face dessa decisão, o INSS veiculou o presente pedido de uniformização, no qual, em apertada síntese, alegou que o acórdão recorrido divergiria do entendimento adotado pelo paradigma oriundo desta Turma Nacional de Uniformização (PEDILEF 200970530013830) no que tange à possibilidade de aproveitamento de documentos do cônjuge, qualificado como empregado rural, como início de prova material do labor rural da Autora.
Após juízo positivo de admissibilidade na origem, os autos foram remetidos a esta Turma Nacional, oportunidade na qual o então Presidente, Ministro MARCO AURELIO GASTALDI BUZZI, admitiu o incidente e determinou a sua distribuição a um dos magistrados integrantes do Colegiado.
Na Sessão Virtual de 13/04/2023 a 19/04/2023, o Colegiado desta TNU decidiu, por unanimidade, afetar o tema ao rito dos representativos de controvérsia (Tema 327).
O Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário - IBDP solicitou sua admissão como amicus curiae, pedido deferido formalmente pela então Relatora, restando assegurada sua intervenção nos termos estabelecidos pelo Regimento Interno.
A Defensoria Pública da União, após intimada para participar do julgamento, apresentou memoriais (eventos 39 e 43).
A autarquia previdenciária, também, juntou ao feito os seus memoriais (evento 48).
Iniciado o julgamento do pedido de uniformização, na Sessão Ordinária de 22/11/2023, a Relatora, Juíza Federal Luciana Ortiz Tavares Costa Zanoni, encaminhou seu voto por negar provimento ao incidente, propondo a fixação da seguinte tese: "Constitui início de prova material do exercício de atividade rural a documentação em nome do cônjuge ou companheiro que o qualifica como empregado rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurado especial.".
Em seguida, pediu vista, antecipadamente, o Juiz Federal Francisco de Assis Basilio de Moraes.
No evento 60, o INSS apresentou memoriais complementares, sugerindo a fixação da seguinte tese:
"Sem prejuízo da possibilidade de utilização de outros documentos constantes dos autos, a documentação em nome do cônjuge ou companheiro que o qualifica como empregado rural, não constitui início de prova material do exercício de atividade rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurada especial."
O julgamento foi retomado na Sessão Ordinária de 16/10/2024 com a apresentação do voto-vista. O Juiz Federal Fabio de Souza Silva, inaugurando a divergência, proferiu voto no sentido de dar provimento ao pedido de uniformização para se fixar a seguinte tese: "a documentação em nome do cônjuge ou companheiro que o qualifique como empregado rural não constitui início de prova material de tempo de trabalho na condição de segurado especial".
Após a apresentação do mencionado voto, os juízes Paulo Roberto Parca de Pinho, Nagibe de Melo Jorge Neto, Tales Krauss Queiroz, Neian Milhomem Cruz e Lilian Oliveira da Costa Tourinho decidiram acompanhar o voto da Relatora no sentido de negar provimento ao incidente do INSS.
Os demais julgadores, Caio Moyses de Lima, Giovani Bigolin, Leonardo Castanho Mendes, Caroline Medeiros e Silva e Rodrigo Rigamonte Fonseca, decidiram aderir à divergência no sentido de dar provimento ao recurso de uniformização.
Diante do empate verificado, pedi vista para proferir meu voto, nos termos do art. 7º, VII, do RITNU.
É o relatório do essencial. Passo a decidir.
E, pedindo vênia à divergência, encaminho voto no mesmo sentido da Relatora.
A questão posta em julgamento foi, devidamente, resumida na questão controvertida:
Saber se constitui início de prova material do exercício de atividade rural a documentação em nome do cônjuge que o qualifica como empregado rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurado especial.
Ou seja, o ponto central da controvérsia reside em definir se a prova material consistente em vínculos empregatícios como empregado rural do marido da Autora lhe seriam extensíveis.
Mesmo reputando valorosas as razões apresentadas pela divergência para dar provimento ao pedido de uniformização da autarquia previdenciária, voto acompanhando a Relatora, pois a interpretação das normas deve ser ampla e inclusiva, buscando o reconhecimento das realidades sociais e econômicas.
É sabido que, diante da dificuldade dos trabalhadores rurais em fazer prova do tempo de serviço prestado na atividade rurícola, não se exige uma vasta prova documental. O legislador exige é que haja início de prova material, corroborado pela prova testemunhal, do período em que se pretende o reconhecimento do labor rural, respeitado o prazo de carência legalmente previsto.
Notadamente nos casos das mulheres, muitas vezes, a prova documental do exercício da atividade rural pode ser escassa ou difícil de obter.
Conforme bem apontado pela Relatora, a "experiência de anos analisando processos previdenciários mostra que os documentos contemporâneos à atividade rural em nome das mulheres são praticamente inexistentes".
Assim, aceitar a documentação do cônjuge amplia as possibilidades de comprovação e evita injustiças. O reconhecimento da documentação do cônjuge reflete a realidade do trabalho familiar, onde as funções são muitas vezes interligadas e complementares.
Com efeito, a documentação do cônjuge homem que o qualifica como empregado rural pode demonstrar a efetiva participação da mulher na atividade rural.
Como consignado pela Relatora, o emprego rural pode constituir forte indício de que "o grupo familiar está enraizado em lides rurais, o que exige, na ausência de outras provas, que a prova testemunhal seja firme e uniforme para comprovar a atividade da segurada especial em regime de economia familiar".
Ademais, em que pese as ponderações da divergência, não se pode admitir, de plano, que o vínculo empregatício de um dos membros do grupo familiar, seja ele urbano ou rural, afaste peremptoriamente a condição de rurícola dos demais integrantes da família.
Isso porque, nesses casos, é necessário avaliar se a remuneração proveniente do trabalho urbano seria suficiente para sustentar a família, estabelecendo se o rendimento gerado pelo trabalho rural se tornaria apenas uma complementação, não essencial, da renda familiar.
Esse é o entendimento consolidado pelo Tribunal da Cidadania e pela TNU:
Tema 532 STJ: O trabalho urbano de um dos membros do grupo familiar não descaracteriza, por si só, os demais integrantes como segurados especiais, devendo ser averiguada a dispensabilidade do trabalho rural para a subsistência do grupo familiar, incumbência esta das instâncias ordinárias (Súmula 7/STJ).
Súmula 41 TNU: A circunstância de um dos integrantes do núcleo familiar desempenhar atividade urbana não implica, por si só, a descaracterização do trabalhador rural como segurado especial, condição que deve ser analisada no caso concreto.
Tal jurisprudência, conforme o voto da Relatora, se aplica também ao emprego rural, pois "se atividade urbana não tem o condão de por si só desconstituir o trabalho em regime de economia familiar o empregado rural com maior razão também não o tem".
O Colegiado desta TNU, no julgamento do PUIL 0000329-14.2015.4.01.3818, embora tenha negado conhecimento ao incidente interposto pelo INSS, manifestou-se acerca da questão em análise:
(...)
Cuida-se de pedido de uniformização interposto pelo INSS sob o argumento de que a prova material consistente em vínculos empregatícios como empregado rural do marido da autora não lhe seriam extensíveis por não representarem exercício de atividade rural em regime de economia familiar. Sustentou como paradigma o Pedilef n. 200970530013830 e o AgRg no AREsp n. 576345. A Presidência proveu o agravo e admitiu o incidente.
Contudo, não prospera a irresignação. O precedente citado do STJ diz respeito ao empregado urbano e não ao empregado rural, que constitui a hipótese dos autos, de modo a não servir como paradigma. Além do mais, pacífica a jurisprudência da Corte Superior em sentido diverso: “permite-se a extensão dessa qualidade do marido à esposa, ou até mesmo dos pais aos filhos, ou seja, são extensíveis os documentos em que os genitores, os cônjuges, ou conviventes, aparecem qualificados como lavradores, ainda que o desempenho da atividade campesina não tenha se dado sob o regime de economia familiar”. (STJ, REsp n. 1.845.585 – SP, rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES).
É que o vínculo em questão demonstra a condição rurícola da entidade familiar, evidenciando situação por demais comum no meio campesino, que se caracteriza pela contratação do homem formalmente, mas não da mulher, que é mantida numa espécie de condição "acessória", indigna à sua individualidade e direitos. Daí que reproduzir esse contexto desumano nada mais seria que perpetuar uma situação degradante ou dar a ela um valor medíocre não correspondente à realidade. Por isso mesmo, o precedente invocado desta Corte está demasiadamente ultrapassado, não representando o atual estágio de compreensão da Turma Nacional, notadamente depois do REsp repetitivo julgado no STJ: (...)
Confira-se a ementa:
EXTENSÃO DE DOCUMENTOS EM NOME DO EMPREGADO RURAL AO CÔNJUGE. INÍCIO DE PROVA MATERIAL VÁLIDO. ENTENDIMENTO DO STJ QUE EXCLUI DA EXTENSÃO OS CASOS DE ATIVIDADE DIVERSA DA RURÍCOLA. SITUAÇÃO FÁTICA NO CAMPO QUE PRIVILEGIA A FORMALIZAÇÃO DO LABOR DO HOMEM, DESTINANDO À MULHER CONDIÇÃO ACESSÓRIA INDIGNA E HUMILHANTE. VEDAÇÃO DE VALORAÇÃO DE TAL CONDIÇÃO, SABIDAMENTE IMPRÓPRIA, EM PREJUÍZO DA FAMÍLIA RURAL. RECURSO DO INSS NÃO CONHECIDO.
(Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei (Turma) 0000329-14.2015.4.01.3818, Rel. Juiz Federal ATANAIR NASSER RIBEIRO LOPES - TURMA NACIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO, 13/12/2019.)
Por fim, importante esclarecer que o presente representativo não está a definir que a mencionada documetação do cônjuge constituirá prova do regime de segurada especial, mas apenas o início de prova material que deverá ser corroborado por prova testemunhal harmônica e robusta.
Assim, diante de situações como a presente, imprescíndivel a aceitação do documento do cônjuge como início de prova material, que deverá ser corroborado por testemunhos idôneos, inclusive deverá, nesse caso, ficar clara a relevância ou não da renda auferida do labor rural para fins de subsistência do núcleo familiar.
Destarte, voto por, acompanhando a solução apresentada pela i. Relatora, negar provimento ao pedido de uniformização interposto pelo réu, fixando a seguinte tese: "Constitui início de prova material do exercício de atividade rural a documentação em nome do cônjuge ou companheiro que o qualifica como empregado rural para fins de concessão de benefício previdenciário na condição de segurado especial.".
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