TNU decide sobre recolhimento abaixo do mínimo e carência
Nesta sexta-feira será visto o tema 349, o qual teve como tese firmada pela Turma Nacional de Uniformização o seguinte texto: "O recolhimento de contribuição previdenciária em valor inferior ao mínimo mensal da categoria, à míngua de previsão legal, não impede o reconhecimento da qualidade de segurado obrigatório, inclusive após o advento da EC 103/2019, que acrescentou o § 14 ao art. 195 da CF/88." Abaixo segue a decisão para análise dos amigos.
EMENTA
PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO DE INTERPRETAÇÃO DE LEI FEDERAL. PREVIDENCIÁRIO. EC 103/2019. QUALIDADE DE SEGURADO DO RGPS. CONTRIBUIÇÃO RECOLHIDA EM VALOR INFERIOR AO MÍNIMO MENSAL. ART. 195, § 14 DA CF/88. JULGAMENTO SOB A SISTEMÁTICA DOS RECURSOS REPRESENTATIVOS DE CONTROVÉRSIA. TEMA 349/TNU.
Questão submetida a julgamento sob o rito dos recursos representativos de controvérsia: Saber se o recolhimento de contribuição em valor inferior ao mínimo mensal da categoria, impede o reconhecimento da qualidade de segurado do RGPS, após o advento da EC 103/2019, que acrescentou o § 14 ao art. 195 da CF/88, bem como em face das disposições do Decreto nº 10.410/2020.
Tese fixada para o tema 349/TNU: O recolhimento de contribuição previdenciária em valor inferior ao mínimo mensal da categoria, à míngua de previsão legal, não impede o reconhecimento da qualidade de segurado obrigatório, inclusive após o advento da EC 103/2019, que acrescentou o § 14 ao art. 195 da CF/88.
Pedido de Uniformização conhecido e desprovido.
TNU, PEDILEF 0504017-94.2022.4.05.8400/RN, Juiz Federal Neian Milhomem Cruz, 16/10/2024.
ACÓRDÃO
A Turma Nacional de Uniformização decidiu, por unanimidade, NEGAR provimento ao pedido de uniformização, nos termos do voto do Juiz Relator, julgando-o como representativo de controvérsia, com a fixação da seguinte tese para o Tema 349: "O recolhimento de contribuição previdenciária em valor inferior ao mínimo mensal da categoria, à míngua de previsão legal, não impede o reconhecimento da qualidade de segurado obrigatório, inclusive após o advento da EC 103/2019, que acrescentou o § 14 ao art. 195 da CF/88".
Brasília, 16 de outubro de 2024.
RELATÓRIO
Trata-se de Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal interposto pelo INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS em face de acórdão da Turma Recursal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte que manteve a sentença de procedência de benefício por incapacidade laboral.
Narra o INSS que após a EC 103/2019, o recolhimento abaixo do valor mínimo não serve para manutenção da qualidade de segurado do RGPS.
Aduz-se divergência em face de julgado da 3ª TR/RS.
O voto vista condutor do acórdão objurgado (evento 01, Anexo 18) averba:
Pedi vista para melhor análise porque parece-me que este colegiado tem discutido repetidamente a questão sob a perspectiva da impossibilidade de cômputo de contribuição inferior ao mínimo legal para fins de carência ou tempo de contribuição sem observar a repercussão da questão em benefícios que não tem carência ou tempo de contribuição como requisitos, como a pensão por morte ou benefícios acidentários, ou mesmo para aferição da manutenção da qualidade de segurado, que pode definir a necessidade de cumprimento de carência de reingresso.
[...]
Destaca-se que quanto a tal questão, a EC 103/2019 em verdade aumentou as possibilidades de complementação, prevendo, além da complementação, a utilização de valor excedente e agrupamento de contribuições.
[...]
Dito isto, verifico que no caso sob julgamento a qualidade de segurado seria perdida em 15/06/2020, instante em que a autora já era segurada empregada, em decorrência de vínculo com a PRODUTOS LUCENA EIRELI, indicado no próprio CNIS como ocorrido em 10/06/2020, e, portanto, contribuinte obrigatória (anexo 6, p. 6).
Certo que o recolhimento inferior ao mínimo não possibilitaria validar a contribuição para fins de carência ou tempo de contribuição, como acertadamente anotado pelo relator, ante a previsão constitucional já destacada. Contudo, para fins de reconhecimento de qualidade de segurado, é ele regular, na medida em que a lei autoriza o pagamento até o 15 dia do mês seguinte e o período de contratação foi inferior a um mês, pois iniciado já no dia 10.
Cabe lembrar que a carência, à vista da vedação de tempo ficto, conta-se dia-a-dia, mas a qualidade de segurado se readquire já no primeiro dia em que restabelecida a vinculação ao sistema previdenciário, não sendo possível deixar de reconhecê-la no caso concreto, em que não há qualquer irregularidade.
Por sua vez, o paradigma assevera:
Portanto, o recolhimento abaixo do valor de um salário mínimo, a partir da Reforma da Previdência, não pode ser considerado para fins de concessão de benefício previdenciário e manutenção da qualidade de segurado, exceto se complementada esta contribuição com base no valor da diferença entre a importância recebida e o salário mínimo, com incidência de alíquota correspondente à categoria de segurado.
No caso dos autos, a parte autora recebeu remuneração inferior ao limite mínimo mensal do salário de contribuição no período de 1 mês e não efetuou a complementação das contribuições até o mínimo, nos termos do art. 29 da EC 103/2019. Assim sendo, a contribuição paga em valor inferior ao mínimo não pode ser considerada para fins de manutenção da qualidade de segurado.
Na sessão virtual de dezembro/2023 o plenário da TNU decidiu, por unanimidade, conhecer o incidente de uniformização e afetá-lo como representativo de controvérsia sob o tema 349, diante da relevância da questão de direito material.
Publicados editais, houve o ingresso de amicus curiae, a saber, DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, o INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO PREVIDENCIÁRIO – IBDP, bem como o INSTITUTO DE ESTUDOS PREVIDENCIÁRIOS – IEPREV.
O MPF, devidamente intimado, manifestou ciência.
Foram apresentados memoriais pela DPU, o IBDP e o INSS.
O INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO PREVIDENCIÁRIO – IBDP propôs a fixação da seguinte tese:
A manutenção da qualidade de segurado, em se tratando de segurado obrigatório, se dá independente do recolhimento de qualquer contribuição ao RGPS, bastando a ocorrência de uma das hipóteses do art. 11 da Lei nº 8.213/91.
O segurado facultativo, por outro lado, apenas constitui a sua qualidade de segurado mediante o efetivo recolhimento da contribuição previdenciária, a qual deve se dar nos mínimos legais.
O disposto nos art. 13, §8º e art. 19-E do Decreto nº 3.048/99, com redação dada pelo Decreto nº 10.410/20 extrapolara o poder regulamentar conferido à União no art. 84 VI, CF/88 e, portanto, não possuem validade jurídica.
A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO em seus memoriais propugnou:
Diante dessas considerações, a DPU, na condição de amicus curiae, requer, dessa Egrégia Corte, que seja uniformizado o entendimento e firmada tese no sentido de que “O Recolhimento de contribuição, ainda que em valor inferior ao mínimo mensal da categoria, NÃO impede o reconhecimento da QUALIDADE DE SEGURADO do RGPS, posto que a EC 103/2019, que acrescentou o § 14 ao art 195 da CF/88 destinou a restrição APENAS ao reconhecimento do TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO, cujo significado não se confunde com o primeiro termo, sendo, nesse sentido, inconstitucionais os termos do decreto 10.410/20”.
Por fim, o INSS propõe a seguinte tese:
A partir da promulgação da Emenda Constitucional nº 103/2019, para fins de aquisição e manutenção da qualidade de segurado, de carência, de tempo de contribuição e de cálculo do salário de benefício exigidos para o reconhecimento do direito aos benefícios do RGPS e para fins de contagem recíproca, somente serão consideradas as competências cujo salário de contribuição seja igual ou superior ao limite mínimo mensal do salário de contribuição.
É o relatório.
VOTO
Superada a discussão acerca do juízo de admissibilidade, em face da afetação do recurso como representativo de controvérsia, com a seguinte questão submetida a julgamento (Tema 349/TNU):
Saber se o recolhimento de contribuição em valor inferior ao mínimo mensal da categoria, impede o reconhecimento da qualidade de segurado do RGPS, após o advento da EC 103/2019, que acrescentou o § 14 ao art. 195 da CF/88, bem como em face das disposições do Decreto nº 10.410/2020.
*** LEGISLAÇÃO ***
Para o deslinde da controvérsia, faz-se necessária a interpretação de normas infraconstitucionais previstas na Lei nº 8.213/91 e, notadamente, do § 14 do art. 195 da CF/88, acrescentado pela EC 103/2019:
§ 14. O segurado somente terá reconhecida como tempo de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social a competência cuja contribuição seja igual ou superior à contribuição mínima mensal exigida para sua categoria, assegurado o agrupamento de contribuições. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)
Importante recordar o disposto no art. 29 da EC 103/2019:
Art. 29. Até que entre em vigor lei que disponha sobre o § 14 do art. 195 da Constituição Federal, o segurado que, no somatório de remunerações auferidas no período de 1 (um) mês, receber remuneração inferior ao limite mínimo mensal do salário de contribuição poderá:
I - complementar a sua contribuição, de forma a alcançar o limite mínimo exigido;
II - utilizar o valor da contribuição que exceder o limite mínimo de contribuição de uma competência em outra; ou
III - agrupar contribuições inferiores ao limite mínimo de diferentes competências, para aproveitamento em contribuições mínimas mensais.
Parágrafo único. Os ajustes de complementação ou agrupamento de contribuições previstos nos incisos I, II e III do caput somente poderão ser feitos ao longo do mesmo ano civil.
Por fim, o Decreto nº 10.410/2020 acrescentou o §8º ao art. 13 do Decreto 3.048/99 e incluiu o art. 19-E:
Art. 13. Mantém a qualidade de segurado, independentemente de contribuições:
[...]
§ 8º O segurado que receber remuneração inferior ao limite mínimo mensal do salário de contribuição somente manterá a qualidade de segurado se efetuar os ajustes de complementação, utilização e agrupamento a que se referem o § 1º do art. 19-E e o § 27-A do art. 216. (Incluído pelo Decreto nº 10.410, de 2020).
Art. 19-E. A partir de 13 de novembro de 2019, para fins de aquisição e manutenção da qualidade de segurado, de carência, de tempo de contribuição e de cálculo do salário de benefício exigidos para o reconhecimento do direito aos benefícios do RGPS e para fins de contagem recíproca, somente serão consideradas as competências cujo salário de contribuição seja igual ou superior ao limite mínimo mensal do salário de contribuição. (Incluído pelo Decreto nº 10.410, de 2020).
§ 1º Para fins do disposto no caput, ao segurado que, no somatório de remunerações auferidas no período de um mês, receber remuneração inferior ao limite mínimo mensal do salário de contribuição será assegurado:
I - complementar a contribuição das competências, de forma a alcançar o limite mínimo do salário de contribuição exigido;
II - utilizar o excedente do salário de contribuição superior ao limite mínimo de uma competência para completar o salário de contribuição de outra competência até atingir o limite mínimo; ou
III - agrupar os salários de contribuição inferiores ao limite mínimo de diferentes competências para aproveitamento em uma ou mais competências até que estas atinjam o limite mínimo.
§ 2º Os ajustes de complementação, utilização e agrupamento previstos no § 1º poderão ser efetivados, a qualquer tempo, por iniciativa do segurado, hipótese em que se tornarão irreversíveis e irrenunciáveis após processados.
§ 3º A complementação de que trata o inciso I do § 1º poderá ser recolhida até o dia quinze do mês subsequente ao da prestação do serviço e, a partir dessa data, com os acréscimos previstos no art. 35 da Lei nº 8.212, de 1991.
§ 4º Os ajustes de que tratam os incisos II e III do § 1º serão efetuados na forma indicada ou autorizada pelo segurado, desde que utilizadas as competências do mesmo ano civil definido no art. 181-E, em conformidade com o disposto nos § 27-A ao § 27-D do art. 216.
§ 5º A efetivação do ajuste previsto no inciso III do § 1º não impede o recolhimento da contribuição referente à competência que tenha o salário de contribuição transferido, em todo ou em parte, para agrupamento com outra competência a fim de atingir o limite mínimo mensal do salário de contribuição.
§ 6º Para complementação ou recolhimento da competência que tenha o salário de contribuição transferido, em todo ou em parte, na forma prevista no § 5º, será observado o disposto no § 3º.
§ 7º Na hipótese de falecimento do segurado, os ajustes previstos no § 1º poderão ser solicitados por seus dependentes para fins de reconhecimento de direito para benefício a eles devidos até o dia quinze do mês de janeiro subsequente ao do ano civil correspondente, observado o disposto no § 4º.” (NR)
Trata-se, portanto, de questão atinente ao princípio da hierarquia das leis e o alcance do poder regulamentar, de modo que se faz necessário estabelecer se o ato administrativo normativo pode ampliar a exigência de observância do limite mínimo contributivo para fins de reconhecimento da qualidade de segurado e não apenas de tempo de contribuição.
*** Os segurados empregados e a Reforma Trabalhista ***
Com vistas a melhor compreensão do alcance da controvérsia em julgamento é importante lembrar que os segurados empregados nem sempre recebem a remuneração mensal igual ao salário-mínimo.
Isso decorre não apenas da possibilidade de o vínculo ser iniciado ou encerrado no curso do mês, mas também pelas profundas modificações na forma de contratação dos empregados regidos pela CLT.
Avulta gizar que com a reforma trabalhista decorrente da Lei nº Lei nº 13.467/2017, a categoria dos trabalhadores com vínculo empregatício passou a abranger os trabalhadores intermitentes e os trabalhadores submetidos a regime de tempo parcial, conforme preconiza a CLT, com redação dada pelo aludido diploma legal:
Trabalho em regime de tempo parcial.
Art. 58-A. Considera-se trabalho em regime de tempo parcial aquele cuja duração não exceda a trinta horas semanais, sem a possibilidade de horas suplementares semanais, ou, ainda, aquele cuja duração não exceda a vinte e seis horas semanais, com a possibilidade de acréscimo de até seis horas suplementares semanais. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017) (Vigência)
§ 1º O salário a ser pago aos empregados sob o regime de tempo parcial será proporcional à sua jornada, em relação aos empregados que cumprem, nas mesmas funções, tempo integral. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.164-41, de 2001)
Trabalho intermitente:
Art. 443. O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)
§ 1º - Considera-se como de prazo determinado o contrato de trabalho cuja vigência dependa de termo prefixado ou da execução de serviços especificados ou ainda da realização de certo acontecimento suscetível de previsão aproximada. (Parágrafo único renumerado pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)
§ 2º - O contrato por prazo determinado só será válido em se tratando: (Incluído pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)
a) de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo; (Incluída pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)
b) de atividades empresariais de caráter transitório; (Incluída pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)
c) de contrato de experiência. (Incluída pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)
§ 3º Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
Em suma, tanto os trabalhadores com jornada parcial, quanto os intermitentes podem ser segurados empregados cuja remuneração mensal fica aquém do salário-mínimo.
**** DESLINDE DA CONTROVÉRSIA ***
De início, não merece prosperar o argumento do INSS lançado em memoriais com base no tema 105/TNU, súmula 73/TNU e tema 1125/STF, eis que todos eles dizem respeito ao cômputo de benefício por incapacidade intercalado para fins de carência e tempo de contribuição.
Convém recordar que a questão controvertida em julgamento diz respeito tão somente à qualidade de segurado do RGPS, ou seja, qual é o requisito necessário e suficiente para que se reconheça a existência de filiação à Previdência Social, assim entendida a relação jurídica entre o trabalhador e o RGPS, a qual não se confunde com carência.
É indubitável, porém, que o Decreto nº 10.410/2020 ao acrescentar o § 8º ao art. 13 do Decreto 3.048/99 e incluir o art. 19-E, fez verdadeira mescla de institutos jurídicos distintos.
Em outras palavras, ao preceituar que para fins de aquisição e manutenção da qualidade de segurado, somente serão consideradas as competências cujo salário de contribuição seja igual ou superior ao limite mínimo mensal do salário de contribuição, o Decreto nº 10.410/2020, ao fim e ao cabo, convolou os segurados obrigatórios, notadamente os de baixa renda – a exemplo dos trabalhadores intermitentes e os submetidos a jornada parcial – em segurados de filiação facultativa, na medida em que a própria filiação passa a depender de ajustes de contribuição.
Repise-se, por relevante, que se a qualidade de segurado depende de observância do limite mínimo mensal da base contributiva, então caso o trabalhador, ainda que com vínculo empregatício, não aufira remuneração mensal igual ou superior ao piso mínimo contributivo, ficará despojado de proteção previdenciária.
Haja vista que tal recolhimento foi erigido em pressuposto para reconhecer a qualidade de segurado, parece intuitivo que a filiação de tais trabalhadores deixou de ser compulsória, posto ser condicionada a eventuais ajustes, os quais podem não ser implementados, inclusive por ausência de capacidade contributiva, pois a complementação exigida incidirá sobre remuneração que o trabalhador, em verdade, jamais recebeu.
Tal ilação é suficiente para revelar que o Decreto nº 10.410/2020, exorbitou de sua função regulamentar, transpondo os limites preceituados no art. 84, inc. VI da CF/88:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
[...]
VI - dispor, mediante decreto, sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
É consabido que o Regime Geral de Previdência Social – RGPS é de natureza compulsória, conforme determina o art. 201 da Carta Política de 1988:
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)
A Lei nº 8.213/91 estabelece quais são os segurados obrigatórios, a saber: empregados, empregados domésticos, trabalhador avulso, contribuinte individual e segurado especial. Diz a lei:
Art. 11. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas:
Prevê, outrossim, a Lei de Benefícios, a categoria dos segurados facultativos:
Art. 13. É segurado facultativo o maior de 14 (quatorze) anos que se filiar ao Regime Geral de Previdência Social, mediante contribuição, desde que não incluído nas disposições do art. 11.
Impende frisar que os segurados obrigatórios ostentam tal qualidade não pelo fato posterior da contribuição – que, por óbvio, é vertida após perfectibilizada a filiação - mas pelo exercício de atividade remunerada previamente descrita na Lei nº 8.213/91.
A contribuição, portanto, não é um antecedente lógico da filiação, mas sim, um consectário da relação jurídico-previdenciária.
O Decreto em epígrafe, por conseguinte, inverteu a lógica das relações previdenciárias dos segurados obrigatórios. E o fez sem qualquer substrato legal ou constitucional.
Demais disso, a redação do § 14 do art. 195 da CF/88, acrescentado pela EC 103/2019 é de clareza solar, pois alude exclusivamente a tempo de contribuição, ou seja, preordena-se a reger os benefícios programados que possuem como requisito de acesso o tempo de contribuição.
Assim, seja sob o enfoque constitucional – filiação compulsória ao RGPS e delimitação da exigência de piso mínimo contributivo apenas para cômputo de tempo de contribuição – seja pelo prisma infraconstitucional – conceitos jurídicos definidos na Lei 8.213/91 – depreende-se que o Decreto nº 10.410/2020 exorbitou da função regulamentar, pois para além de inovar no ordenamento jurídico, invadindo seara de conformação de incumbência do Poder Legislativo, também subverteu a finalidade precípua da Previdência Social, qual seja, a de salvaguardar os trabalhadores e seus dependentes cuja atividade implica filiação automática e obrigatória, das contingências sociais, notadamente, os infortúnios não programáveis, a exemplo de doença e morte.
Em reforço argumentativo, vale citar o entendimento sedimentado pelas Turmas Regionais de Uniformização de Jurisprudência da 4ª e 5ª Regiões:
EMENTA: PREVIDENCIÁRIO. PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO. BENEFÍCIO POR INCAPACIDADE. SEGURADO EMPREGADO E EMPREGADO DOMÉSTICO. COMPETÊNCIAS POSTERIORES À EC 103/2019 COM SALÁRIOS DE CONTRIBUIÇÃO ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL. VALIDADE PARA FINS DE AQUISIÇÃO E MANUTENÇÃO DA QUALIDADE DE SEGURADO E DE CARÊNCIA. 1. O § 14 do art. 195 da CF/88, incluído pela EC 103/2019, passou a excluir os salários de contribuição inferiores ao mínimo legal apenas da contagem como "tempo de contribuição" do RGPS. O Decreto n. 10.410/2020, ao ampliar a restrição para os critérios de qualidade de segurado e carência, ultrapassou sua função regulamentar, uma vez que criou exigência não amparada na reforma promovida pela EC n. 103/2019. 2. Não é razoável exigir que o empregado complemente contribuições tendo por base de cálculo remunerações que efetivamente não recebeu a fim de manter sua qualidade de segurado, haja vista que esta não resulta do recolhimento de contribuições, mas sim do mero exercício de atividade remunerada. 3. Assim, tratando-se de segurado empregado e empregado doméstico, os recolhimentos realizados com base em remuneração inferior ao limite mínimo mensal do salário de contribuição não impedem a manutenção da qualidade de segurado nem o seu cômputo como carência para o deferimento do benefício por incapacidade. 4. Incidente conhecido e provido, determinando a devolução dos autos à Turma Recursal de origem para adequação do julgado. ( PUIL Nº 5000078-47.2022.4.04.7126, TURMA REGIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO DA 4ª REGIÃO, Relatora para Acórdão ERIKA GIOVANINI REUPKE, juntado aos autos em 21/12/2023).
PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO REGIONAL. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. SEGURADO EMPREGADO. AUXÍLIO POR INCAPACIDADE TEMPORÁRIA. CONTRIBUIÇÕES INFERIORES AO MÍNIMO. POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO PARA FINS DE CARÊNCIA MESMO APÓS A EC N.º 103/2019. INCIDENTE DO INSS DESPROVIDO. I – O § 14 do art. 195 da CF/1988, incluído pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019, somente exige que a contribuição seja igual ou superior ao mínimo mensal para fins de reconhecimento do período correspondente como tempo de contribuição. II - O Decreto n.º 10.410/2020, ao estender tal restrição à carência, extrapolou o seu poder regulamentar e violou o princípio da legalidade e a própria Constituição. III – Pedido de Uniformização conhecido e não provido, fixando-se a seguinte tese: “O segurado empregado pode computar para fins de carência a competência cuja contribuição seja inferior ao mínimo legal, não havendo necessidade de complementação ou agrupamento, e ainda que se trate de período posterior ao advento da Emenda Constitucional nº 103/2019 (PUIL Nº 0500937-22.2022.4.05.8013, TURMA REGIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO DA 5ª REGIÃO, Relatora: GISELE CHAVES SAMPAIO ALCÂNTARA; Data do julgamento: 04/09/2023).
Dito isso, revela-se necessário estabelecer baliza na interpretação da questão controvertida, de modo a salvaguardar o direito fundamental à Previdência Social (CF/88, art. 6º, caput) e conferir ao Decreto nº 10.410/2020 interpretação que harmonize suas regras às normas legais (Lei 8.213/91) e constitucionais (CF/88, art. 201, caput e § 14 do art. 195 da CF/88, acrescentado pela EC 103/2019).
Assim, propõe-se a seguinte tese:
O recolhimento de contribuição previdenciária em valor inferior ao mínimo mensal da categoria, à míngua de previsão legal, não impede o reconhecimento da qualidade de segurado obrigatório, inclusive após o advento da EC 103/2019, que acrescentou o § 14 ao art. 195 da CF/88.
Isso posto, voto por negar provimento ao Pedido de Uniformização, com fixação de tese como recurso representativo de controvérsia.
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